quarta-feira, 29 de maio de 2013

A Mulher Nua (parte - repostagem)


- 140?!!
A receita ali, ao lado do computador. A atendente  não parava de teclar. Os olhos fixos na tela.
- Cada caixa.
- !!
Pensou no barulho das máquinas de escrever.
- Posso conseguir um desconto pra senhora... deixa eu ver...
Massageou o rosto com as duas mãos, como no tempo que usava lentes de contato e não podia tocar nos olhos, lavando o rosto sem água. Teclava. Se fosse máquina de escrever a farmácia pareceria um cartório. Cartório de hoje já parece farmácia. Se fosse máquina de escrever não estaria na farmácia. Olhou para os lados e, vencida, segurou o rosto entre as mãos, os cotovelos no balcão. Máquina de escrever, farmácia, cartório... É. Talvez o remédio fosse necessário. Opinião médica. Já passava da 3ª., então não havia mais como resistir.
140 cada caixa. Dois comprimidos por dia, vezes  x comprimidos... 3 caixas.
Talvez devesse ir ao cartório. Ou à Bienal. Ou à Patagônia. Viu uma foto de sua tia na Patagônia. Todo o mundo diz que a Patagônia é linda. Talvez o dinheiro fosse melhor gasto.
- Em quantas vezes?
- 3, no cartão.
A carteira imensa se perdia na bolsa maior ainda, cheia de zíperes  e partições. O som agora vinha de uma TV fixada no alto da parede. Momentos decisivos de uma novela de  sucesso. Quando não olhavam para as telas do computador, era para a TV toda a atenção da farmácia. Melhor assim, o constrangimento de procurar a carteira por tanto tempo, ficaria entre ela e a bolsa enorme. A carteira que também tinha mais partes e zíperes e muitos, muitos cartões: de pizzaria, serviços, grandes ex-amigos. O que ainda faziam lá? Há tanto tempo não precisava daquele departamento da carteira. Decidiu: chega de teias e aranhas, chegando em casa, jogar tudo fora. Para dar espaço para coisas novas.
- A Sra. Faz um favor? Preenche o cadastro pra gente? Assim recebe nossas promoções!
Sobrinha de farmacêutico alemão e dono de loja árabe, promoção era coisa do tio do Oriente. É estranho, ainda é estranho. Tudo se transformando em loja de conveniência 24 horas: até farmácia. Pior se as promoções forem de remédios. Imaginando receber folhetos do tipo:  “mês da neosaldina! Leve duas e pague 3!”; “dipirona em liquidação: imperdível!”.

Estava difícil encaixar seus sentimentos naquela realidade. Difícil entender porque sofria tanto. Porque não dava de ombros à tudo e se isolava numa praia, na serra, vivendo com o som da natureza, poucos diálogos humanos e sendo amada por cães ou gatos que dão carinho em troca de nada. Claro, com um bom computador para não perder o contato com o mundo, e para que o mundo soubesse de sua vontade de ser ouvida, compreendida, reconhecida, ainda que preferisse um status à  lá Garbo. Talvez não preferisse. Talvez estivesse sendo empurrada para a solidão. Talvez entendesse melhor Greta Garbo agora, desglamourizando  a frase.  Era real, era sua vida também. “I want to be alone”. Como se já não estivesse. Talvez ela já estivesse sozinha.
- Vai em 3 mesmo, senhora?
Estranho ser chamada de senhora.
- Sim, por favor.
- (...)
- (...)
- Senhora?
- Sim?
- A senhora poderia me dar o cartão, por favor?
- Ah! Claro... desculpe.
- Imagine, senhora.
Senhora para mim era a Nossa Aparecida e minha mãe. Minhas tias, qualquer mulher que tivesse mais do que 30 anos quando eu tinha 10. Senhora hoje, no modo como as pessoas se tratam, é quase uma ofensa. Um cinismozinho básico. Melhor que “Tia”. Mas a moça do balcão nunca a iria chamar de “Tia”. “Vai em 3 mesmo, Tia?”. Nem no cartório. Só na rua. Nem na rua. Na rua era Madame, Colega, Chefia... tudo porque estava dentro deum carro. Dentro sempre de alguma coisa, ou de alguém. Queria estar do lado de fora. De alguma coisa e principalmente de alguém. Daí vinham as dores. E se abrisse a porta do carro, saísse? Economizaria quase 400. Não haveria mais dor, será?
Greta Garbo sabia das coisas. Muita gente sabia das coisas. E sabe. Por que eu não sei? Se perguntava enquanto levava a cestinha para o caixa. Deu uma espiada na novela, estava quente mesmo. E a chamaram de Senhora, cumpriram seu papel  no atendimento. Tudo certo.  O teclado, o “zuiim” da maquininha cuspindo um papel amarelo avisando que ela estava 400 mais pobre. O carro. O suspiro. O não querer ir e não ter opção. Ligou o rádio, mudou a estação. Ligou o carro e queria mudar o rumo. Fez a curva, atravessou o farol amarelo e seguiu pelo mesmo caminho que a levava todos os dias para dentro. Com 400 contos a menos na conta.


19.08.2011

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