Em 1987 Seu Farão foi viajar. Era comecinho do ano, verão e carnaval. Dias quentes e vazios com noites repletas de
gentes e alegria, como em todos os carnavais. Com o Natal e Reveillon alegrérrimos de 86, 1987 prometia e todos estávamos ansiosos pelo porvir.
Muitos planos e mapas se desenhavam e eu já traçava a rota: primeiro Paris, depois Londres, uns dias na Espanha, Ibiza, umas fotos em Portugal, Bélgica, Marrocos... assim, sem mais nem ordem.
Mas aí o Seu Farão resolveu viajar. Ele não queria, não. Mas foi. Não queria de jeito nenhum. Gostava do cantinho dele, de cerveja, de paparicar o netinho de 1 ano, trabalhar e ler jornal pela manhã. Principalmente aos domingos. Jornal de domingo tomava um tempo do Seu Farão... E não é de tomar tempo quando alguém fica recortando artigos e matérias só pra mostrar pra você o que está acontecendo no mundo? Só pra inteirar, sabe como é? Pra gente conversar, bater papo, trocar idéias e conselhos como fazíamos nas noites.
Mesmo vivendo assim pequeno, seu Farão era grandão, viu? Não era mirrado, não! Era gigantesco, precisava ver! 1 metro e 70 de gigantice pura! Só pra caber aquele coração, Seu Farão tinha mesmo que ser grandão. O coração amanteigado fazia seu Farão chorar ouvindo "Perhaps Love" com Placido Domingo e John Denver mesmo sem entender uma palavra em inglês, enquanto tomava seu copinho de cerveja (um só mesmo). Coração que batia alegre quando se falava em festa. Seu Farão se amarrava numa festa. Dançar era com ele mesmo. Dançar e brincar. Brincar e dançar. E contar piadas, claro.
Pelo menos nos finais de semana, no bar do Mica, embaixo da minha janela, seu Farão reunia gente e contava piada. Quando não tinha gente, era o copinho de cerveja e o jornal que se espalhava no balcão do bar do Mica.
Durante a semana, Seu Farão trabalhava de terno e gravata, de preferência aquele que não amassasse, pra não dar trabalho. Às vezes chegava aborrecido, chateado mesmo. Não conseguia entender a mentira, não aceitava desonestidade. Seu Farão acreditava no que diziam, e quando descobria que era mentira... ficava triste. Mas Seu Farão fez amigos de verdade acreditando nos outros! Eram como irmãos dele. Bonito de ver como se abraçavam emocionados!
Não sei porque ele foi viajar com tanta coisa pra fazer ainda! Seu Farão estava disposto, dispostíssimo à melhorar de vida, a pedir aumento e promoção, sim senhor! Lembro direitinho que uns dias antes da viagem, começou a experimentar várias combinações de ternos calças e camisas pra impressionar o chefe. Começou sério e depois desbancou pra fanfarrice de sempre. À cada troca de roupa, fingia que estava desfilando, fazia micagens e rebolava. Ah, esse Seu Farão...! Escolhemos algumas combinações que ele deixou separadas em cima da cama.
Seu Farão queria dar um basta numa vida toda de sacrifícios e dedicação, nessa luta solitária contra os números e os homens. Ô, se queria. Era hora de aproveitar um pouco, descansar.
Mas aí, ele foi viajar. Vai ver, descansar em outro lugar, né?
Ele não queria. Ninguém queria. Ele dizia: "Minha.. (Minha era eu), faz o que for preciso pra eu ficar aqui, tudo o que for preciso, viu? Eu quero ficar aqui!".
Fizemos o que pudemos, ele mais do que qualquer um.
Mas aí... teve que ir e foi. Viajou.
Foi no dia 23 de Fevereiro de 1987 que Seu Farão foi viajar.
Sabe que eu nunca mais vi matérias de jornal recortadas? E demorei pra ouvir "Perhaps Love" de novo porque dava muita saudade do Seu Farão.
Então a gente resolveu que tinha que cuidar da família como ele sempre cuidou. E ser alegre também. Não ter tanto medo da vida, nem medo de temer a vida. Só depois que ele viajou é que nos demos conta do tamanho do pedaço da gente que viajou com o Seu Farão.
Depois que Seu Farão foi viajar, eu via muita gente na rua parecida com ele e um dia quase chamei: "Pai!" porque, nossa, era igualzinho! Mas eu sabia que ele tinha ido viajar, então não chamei, não.
Pois, é.
De vez em quando a saudade vem mais forte, principalmente quando a gente fica criança de novo, como eu fiquei há uns anos depois que levei um susto desses que a vida dá.
Acho que só hoje aprendi o que Seu Farão ensinou quando vivia conosco: não se magoar à tôa, perdoar, se não puder perdoar, esquecer.
E eu, que tenho tanto à agradecer, desconfio que foi Seu Farão que deu uma forcinha com aquele jeitão dele...
"Vai, Chefe, faz favor... minha caçula ta precisando, dá um jeitinho aí, vai?"
Hehehe... é a cara dele.
Obrigada, Pai. Valeu pela força.
"Perhaps Love" pra todos.