- 140?!!
A receita ali, ao
lado do computador. A atendente não parava de teclar. Os olhos fixos na
tela.
- Cada caixa.
- !!
Pensou no barulho das
máquinas de escrever.
- Posso conseguir um
desconto pra senhora... deixa eu ver...
Massageou o rosto com
as duas mãos, como no tempo que usava lentes de contato e não podia tocar nos
olhos, lavando o rosto sem água. Teclava. Se fosse máquina de escrever a
farmácia pareceria um cartório. Cartório de hoje já parece farmácia. Se fosse
máquina de escrever não estaria na farmácia. Olhou para os lados e, vencida,
segurou o rosto entre as mãos, os cotovelos no balcão. Máquina de escrever,
farmácia, cartório... É. Talvez o remédio fosse necessário. Opinião médica. Já
passava da 3ª., então não havia mais como resistir.
140 cada caixa. Dois
comprimidos por dia, vezes x comprimidos... 3 caixas.
Talvez devesse ir ao
cartório. Ou à Bienal. Ou à Patagônia. Viu uma foto de sua tia na Patagônia.
Todo o mundo diz que a Patagônia é linda. Talvez o dinheiro fosse melhor gasto.
- Em quantas vezes?
- 3, no cartão.
A carteira imensa se
perdia na bolsa maior ainda, cheia de zíperes e partições. O som agora
vinha de uma TV fixada no alto da parede. Momentos decisivos de uma novela
de sucesso. Quando não olhavam para as telas do computador, era para a TV
toda a atenção da farmácia. Melhor assim, o constrangimento de procurar a
carteira por tanto tempo, ficaria entre ela e a bolsa enorme. A carteira que
também tinha mais partes e zíperes e muitos, muitos cartões: de pizzaria,
serviços, grandes ex-amigos. O que ainda faziam lá? Há tanto tempo não
precisava daquele departamento da carteira. Decidiu: chega de teias e aranhas,
chegando em casa, jogar tudo fora. Para dar espaço para coisas novas.
- A Sra. Faz um
favor? Preenche o cadastro pra gente? Assim recebe nossas promoções!
Sobrinha de
farmacêutico alemão e dono de loja árabe, promoção era coisa do tio do Oriente.
É estranho, ainda é estranho. Tudo se transformando em loja de conveniência 24
horas: até farmácia. Pior se as promoções forem de remédios. Imaginando receber
folhetos do tipo: “mês da neosaldina! Leve duas e pague 3!”; “dipirona em
liquidação: imperdível!”.
Estava difícil
encaixar seus sentimentos naquela realidade. Difícil entender porque sofria
tanto. Porque não dava de ombros à tudo e se isolava numa praia, na serra, vivendo
com o som da natureza, poucos diálogos humanos e sendo amada por cães ou gatos
que dão carinho em troca de nada. Claro, com um bom computador para não perder
o contato com o mundo, e para que o mundo soubesse de sua vontade de ser
ouvida, compreendida, reconhecida, ainda que preferisse um status à lá
Garbo. Talvez não preferisse. Talvez estivesse sendo empurrada para a solidão.
Talvez entendesse melhor Greta Garbo agora, desglamourizando
a frase. Era real, era sua vida também. “I want to be alone”. Como se já
não estivesse. Talvez ela já estivesse sozinha.
- Vai em 3 mesmo,
senhora?
Estranho ser chamada
de senhora.
- Sim, por favor.
- (...)
- (...)
- Senhora?
- Sim?
- A senhora poderia
me dar o cartão, por favor?
- Ah! Claro...
desculpe.
- Imagine, senhora.
Senhora para mim era
a Nossa Aparecida e minha mãe. Minhas tias, qualquer mulher que tivesse mais do
que 30 anos quando eu tinha 10. Senhora hoje, no modo como as pessoas se
tratam, é quase uma ofensa. Um cinismozinho básico. Melhor que “Tia”. Mas a moça
do balcão nunca a iria chamar de “Tia”. “Vai em 3 mesmo, Tia?”. Nem no
cartório. Só na rua. Nem na rua. Na rua era Madame, Colega, Chefia... tudo
porque estava dentro deum carro. Dentro sempre de alguma coisa, ou de alguém.
Queria estar do lado de fora. De alguma coisa e principalmente de alguém. Daí
vinham as dores. E se abrisse a porta do carro, saísse? Economizaria quase
400. Não haveria mais dor, será?
Greta Garbo sabia das
coisas. Muita gente sabia das coisas. E sabe. Por que eu não sei? Se perguntava
enquanto levava a cestinha para o caixa. Deu uma espiada na novela, estava
quente mesmo. E a chamaram de Senhora, cumpriram seu papel no
atendimento. Tudo certo. O teclado, o “zuiim” da maquininha cuspindo um
papel amarelo avisando que ela estava 400 mais pobre. O carro. O suspiro. O não
querer ir e não ter opção. Ligou o rádio, mudou a estação. Ligou o carro e
queria mudar o rumo. Fez a curva, atravessou o farol amarelo e seguiu pelo
mesmo caminho que a levava todos os dias para dentro. Com 400 contos a menos na
conta.
19.08.2011