domingo, 27 de abril de 2014

Destroços

CENA 01. - EXT-HIGWAY- 

FUMAÇA SAINDO DOS CARROS ENVOLVIDOS EM UM GRAVE ACIDENTE. CÂMERA SAI DO CÉU AZUL TURQUESA E CORRIGE PARA DENTRO DE UM CHEVROLET BRANCO. ENTRA DENTRO DO CARRO. OUVE-SE GRITOS E RUÍDOS. O ACIDENTE ACABARA DE ACONTECER. ELA ESTÁ COM A CABEÇA SANGRANDO E PARTE DA DIREÇÃO AMASSA SEU ROSTO. CÂMERA CORRIGE PARA SUA MÃO. UM PAPEL RESPINGADO DE SANGUE ESTÁ ENTRE SUA MÃO ABERTA E O BANCO DO PASSAGEIRO. CÂMERA APROXIMA E COMEÇA A "LER AS PALAVRAS". EFEITO. PALAVRAS NA TELA. TRANSFORMAM-SE EM VOZ E EM CENAS NARRADAS. AMBIENTE LISÉRGICO, UMA VIAGEM MENTAL.


Se havia uma coisa que eu fazia questão de ser quando crescesse era ter um bom caráter, ser do bem e com isso fazer a diferença no meu e no sopro dos outros.

Durante um tempo até consegui. Quase tive um milhão de amigos apenas sendo o que era. Com bons-humores, mal-amados, bem-quereres, muita música, cinema e filosofia entre um  novo destilado e outro, uma nova experiência, sóis. luas e avenidas. Largos da Pólvora e Vilas Gomes me traziam e deixavam nos lugares que queria estar. Assim como meus pés que de tão andantes são fortes e duros nessas novas caminhadas que a vida me impôs quando era o momento de me recostar no peito e suspirar.

Se havia alguém que eu acreditasse que teria um futuro brilhante, era eu.

Até que...

Tenho mais vitórias, sempre tive. Venci muitas guerras, a última ainda enfrento raspando o tacho do que ainda pode haver de perdão e compreensão no peito e na mente. Raspando bem o tacho, porque está muito difícil. É quando vejo que é preciso mais religiosidade e filosofia em minha vida para conseguir perdoar. É preciso perdoar. Não sem antes publicar, como uma confissão às avessas, a Odisséia da que foi sem nunca ter sido.

Vivi experiências maravilhosas, a maior de todas, a maternidade. Isso foi meu. Não dava para tirar. Ainda que tentasse, não podia amamentar. Ainda que quisesse, não conseguia sentir os movimentos dentro do meu corpo, e meu corpo dando formas a outro ser. Não acredito que se conforme de não poder gerar. Gerar uma vida a partir da minha vida, dos meus batimentos cardíacos, dos meus sonhos, do meu sangue que bombava mágicas para aquele coraçãozinho em formação.

Guardados os tempos que vivemos, fui uma daquelas Helenas que despem-se pros seus maridos, poder e força de Atenas sem saber que  era eu mesma o orgulho e a raça, apenas.

Então...

É incomensurável o estrago do Um sobre o Outro. O estratégico e meticuloso plano independente de vida.
E foi assim, como o silêncio após o Tsunami. Alguns gemidos de dor ouvidos perto, longe, tantos que não é possível reconhecer a própria tragédia. Aqueles minutos em que a consciência parece se ajeitar como um peão de corda parando de girar até cair para o lado. Morto.

Assim, meticulosamente, minou o terreno em volta para que a fuga fosse difícil, para que no trajeto da ida fosse pisar no escuro, correndo o risco de uma explosão, deixando um pedaço naquelas terras tão valiosas. Uma fuga lenta, desordenada, cercada de perigos.

Que fosse, mas que se aleije. Capenga, vai! Vai pra ver como é a vida sem as muralhas de cimento, vai! Mas que  deixe pedaços, que não saia inteira já que perder nunca foi uma opção.

Pisei em minas, sim. Ficaram partes que sozinhas são absolutamente dispensáveis. E podem ser substituídas.

Assim meus pedaços estão desviando de minas, armadilhas e mensagens subliminares e sinais enganosos como que num deserto, tivesse que vencer as tentações. A sede, a fome.

Guardadas as fábulas fabulosas, sobrevivo a  pragas do Egito, depois de ser entregue como alimento para insetos que primeiro roeram os sapatos, depois as carnes, entraram pelo sangue enfraquecendo os órgãos, tirando o fôlego e força física.

Guardados os tempos e o grau de crueldade, fui uma Rebeca. Esquecível. Atormentada psicologicamente por outra mente, apagando sonhos, desejos e palpitações que fazem a vida ser a vida que nos emociona.

Depois de lhe enfraquecer o físico, enlouquecer a razão, que vá! Atordoadamente hipo-estimada, desvalorada, desvalida. Que vá de volta ao zero de onde  acredita ter encontrado o corpo, numa quebrada qualquer da vida.

Que volte para a esquina, engano seu, com menos do que veio porque não há papéis que neste mundo sejam menores que palavras e o caráter que eu consegui ter quando cresci. E que me trouxe aqui. Diante de mim mesma, reconhecendo enganos e desejos que deixei, porque sonhei.

E sonhei, sonhei, sonhei. Até ficar com dó de mim. E depois me cansei, cansei, cansei de colocar a culpa em mim.

Ninguém em sã consciência procura a infelicidade e cria doenças.
Minha consciência é sã. Como meu corpo é saudável, quente. que como a minha mente e sonhos, foi mal explorado e dá sinais que pode dar muito, muito mais a cada descortinamento. Está pronto para o novo.

Se havia algo que eu queria, havia. Tudo o que eu podia ser e não fui.

É muito difícil definir o estrago feito. Medir a circunferência da cratera. Tudo isso desfez de mim o que era.
Impossibilitou-me de ser.

Que o meu bem volte, que eu consiga reconstruir esse país destroçado pela guerra. Que eu me reerga em tempo de ainda voltar a sentir o que meu coração não diz. Há outro coração a espera, eu sei. Não há o que perdoar a quem não pede perdão, sequer reconhece o mal e a força propulsora em sua direção

Efêmero, mirim.
Que seja feliz, sim. Sim!

Longe de mim.

Ao meu filho: estou feliz. Pela primeira vez decidida a tentar ser feliz. Me desculpe sair da maneira que saí, tinha medo de desistir. Eu voltarei, tenha certeza. Sei que estará bem e confortável. Mas é muito importante que saiba que qu2mmmmmmmmmkl

CORTE DE CENA BRUSCA. FREADA. ACIDENTE. VÁRIOS SONS DE CARROS BATENDO UM ATRÁS DO OUTRO. COMEÇAM GRITOS. BUZINAS. FUMAÇA.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

Se lhe Parece

Muitas vezes já me desencontrei dos habitantes desse mundo. Achei que não fazia parte dele. Antes mesmo de entender regras sociais, já desconfiava dos nãos e proibidos ensinados por uma mãe machista, dona de casa e extremamente adorável. Daquelas que sujava o avental de ovo, que deixava um bolo sempre quentinho e cozinhava de saia xadrez e saltinho scarpin quando éramos crianças. Fazia tudo pelos filhos e marido, uma mulher e esposa exemplar. Amor nunca me faltou. Cuidado, carinho e brincadeiras também não. Ela era toda filhos. Toda família.

Mas não parecia ser da minha espécie. Eu sabia que diante de tal situação a resposta deveria ser "não", apesar de não sentir assim. E percebia que muitos "nãos" tinham tudo a ver com o mundo que ela pertencia e que deveriam ser mais, deveriam ser NUNCA. Graças, seus "nãos" me salvaram de muitos apuros, causas que poderiam ser perdidas. Ela me ensinou a viver neste mundo muito bem.

O problema era conhecer este mundo e conflitar com quase tudo. Em plena guerra fria, dentro e fora de casa, tudo era meio de viés. As poesias, os jornais, as conversas, o pode e não pode. Tinha primeiro de abril que éramos obrigados a cantar o hino nacional da escola. Tinha primeiro de abril que não se podia sequer comentar o assunto. Proibido.

Na verdade, minha relutância com os nãos vinham da falta do "sim". Tinha pouco sim na minha infância, pouco sim na adolescência. Em contrapartida, nessa época, transgredir era uma delícia.

Fazer escondido o proibido que hoje é vendido em loja de conveniência, era muito, mas muito mais definitivo. Era a nossa tatuagem. Ficava tatuado, marcado para sempre dentro do corpo. E nos identificávamos, os zuretas.

Graças à Deus, conforme o tempo foi passando, descobri que há muitos, muitos diferentes iguais. Meu primeiro grande amor, meu namoradinho, me respondeu:"eu também sou diferente, não penso como eles querem que eu pense". Amor. Tenho vontade de falar com ele até hoje, saber como está, se sucumbiu ao sistema...

Meu segundo grande amor sucumbiu ao sistema que eu sei. Mas antes disso foi um espetáculo, fizemos história um na vida do outro.

Meu terceiro grande amor também era um transgressor e continua a ser. Sensibilíssimo, de sentimento e mãos delicadas, um gênio. Continua sendo um grande homem delicado, genial, fiel às suas loucuras internais, maiores que as minhas. Admirável.

Meus amigos nunca foram desse planeta. graças!
Com todos eu podia conversar sobre qualquer coisa.

Era a época. Época fértil e boa, boa fornada de pessoas. Onde tudo era melhor definido. O bem era o bem e o mal era o mal e ambos convivendo dentro de nós, cabendo a nós controlar os ânimos e escolher qual o lado era nosso de fato.,

Tantos filmes e frutos naquela época que não consigo, confesso, deixar de pensar nas mudanças.

Homem usar brinco era um escândalo. Quando vejo alargadores tamanho 15, 20 e corpos lindos tatuados, me encontro lá nos anos 70, onde provavelmente teria me perdido no Marrocos, Índia ou Barcelona, trabalharia em Londres e filosofaria em Paris voltando ao Brasil com marcas pelo corpo, alma e mente.

Não me vanglorio do que digo, não acho que seja vantagem. Mas quero ainda fazer parte do paraíso onde vivem as pessoas que admiro. Quero fazer parte dele, quero chegar e procurar o meu lugar.

O problema é que meus heróis estão indo pra festa no céu. Chego até a pensar, pelo rumo que minha vida tomou, que minha felicidade esteja lá, no céu.

Quando o dia chegar... ah... quando chegar!