Ama-me com ternura.
Ele estava acostumado a ouvir o barulho de panelas e pratos
debaixo d’água. Fazia parte dos sons da infância, adolescência, e agora, da
maturidade. Lá, na frente da TV, nem ouvia. A torneira aberta, os pratos
batendo. Era um som igual à tantos. Era um som comum. Comum como deveriam ser
os pensamentos da dona daquelas mãos que esfregavam panelas, pratos, copos, só que não.
Era assim, automático. Nos dias que tentou chamar atenção para aquilo, o que
ouviu foi um sermão nada sutil, que a vida era assim, que quem tem casa tem que
cuidar, que louça suja é pra lavar, roupa é pra passar. Vindo de quem vinha,
parecia absurdo. Faladas com tanta naturalidade que nem o interlocutor percebia
o grau de conformismo machista dentro delas. Vindo de quem vinha porque era
considerado moderno. Lavava louça (quando dava na telha ou queria agradar).
Trocava fraldas (adorava novidades e participar). Arrumava a cama... ops! Isso não, nunca.
Em 5 anos, duas vezes a cama arrumada por aquelas mãos fortes, que eram
responsáveis pela manutenção da casa - aquelas coisas de trocar lâmpadas,
instalar fios, consertar paredes, desentupir pia... enfim, papéis bem
definidos. Se dizia moderno, compreensivo, falante, alegre e de muitos amigos, bom
papo.
Alguma coisa estava errada naquele moto contínuo, embora não conseguisse identificar a razão do incômodo. Era mais que lavar a louça de domingo, como todas as mammas do bairro faziam. Era mais o quê? Não alcançava.
A torneira continuava aberta e os sons de pratos e talheres
se encontrando embaixo d’água ficando cada vez mais alto, como sinos badalando
na cachola de um bêbado. Ela olhava a espuma diluindo sob a água... mais uma
vez... de novo.... de novo.... e de novo. A cada utensílio colocado no
escorredor de louça, um fio de água escorria sobre seu braço, molhando a
camiseta já toda úmida na barriga.
Começava a pensar onde estava há 10 anos, naquela hora, naquele domingo. Saindo
de um cinema, indo pra um café, absoluta. Depois, voltando pra casa, tirando o
sapato, arrumando suas coisas, fazendo anotações para o trabalho da semana; escolhendo alguma coisa para comer; deitando na frente da tv e esperando o tempo passar e o sono chegar.
Hoje, acordava com o sono que não ia nunca. Amanhã, mais uma semana de
trabalho.
A água, a espuma, as lembranças... levou um susto quando os
braços fortes se cruzaram sobre suas costas.
-
Ai...!
-
Hmmm...
-
Hmmm , o quê?
-
Vai, deixa disso... me beija.
-
(bicota)
-
Ai, só isso? Dá um beijo de verdade! Quero
beijar...
-
(smack)
-
(ssssssmaaaaack)
-
(schulep)
-
(schulep)
-
hmmm… tá com um cheirinho… de detergente.
-
Ah, dá licença!
-
Vai, que é que tem? Detergente é limpeza!
-
(schuleplep)
-
.... sua barriga ta molhada...
-
O que você queria? To lavando louça!
-
Mas, precisa se molhar lavando louça? Lava a
louça, não você...
Não, não precisava. Estar a fim, mesmo com cheirinho de detergente, bastava.
-
Ta, então, chega.
-
Ô, beeeem.... to brincando...
-
Ta, ta bom. Agora chega.
-
Ô loco, que mal-humor...
Humor mal-ajambrado, desencentivado, inexplorado.
-
É.
-
(suspiro)
-
(água, espuma, prato, talheres)
-
(passos, suspiro de novo)
Agora, as últimas notícias do
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1 comentários:
Partes de "A Mulher Nua". Coisas de amor, expectativas, frustrações e volta por cima. Quantas mulheres e histórias! Breve, nas melhores livrarias da cidade
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